Entre a falta e o excesso
- Fernanda Gregório Fonseca

- 29 de out.
- 3 min de leitura
Há algo de profundamente formador, e também feridor (será que existe essa palavra?), na maneira como fomos criados. Entre o toque que faltou e o limite que sobrou, nossa alma aprendeu o tamanho que poderia ter. E talvez a história de quase todos nós seja essa: a busca por caber em si mesmos depois de uma infância passada tentando caber no mundo de outros.
Crescemos sob olhares que, às vezes, amaram do jeito que sabiam, mas nem sempre do jeito que precisávamos. Uns conheceram o vazio da ausência: o amor que não veio, o afeto que não se fez presença, a voz que não respondeu. Outros conheceram o sufoco do controle: o amor que veio demais, mas veio como peso; como exigência, como expectativa, como imposição de ser aquilo que se esperava.
E assim, entre a falta e o excesso, fomos moldando o corpo psíquico que até hoje tenta encontrar a medida do próprio existir.

O lugar da falta
Freud dizia que o sujeito nasce da falta. É na ausência que o desejo se estrutura, é na incompletude que aprendemos a desejar. Mas há uma diferença entre a falta estruturante, que cria espaço para a vida, e a falta traumática, que cria buraco.
Quando a falta é grande demais; quando o ambiente não acolhe, não responde, não espelha; a criança cresce sem o contorno interno que a faz sentir-se real. Winnicott chamava isso de falha ambiental primária: a experiência de não ter sido sustentado o suficiente para se tornar si mesmo. E então surge um falso self; adaptado, funcional, mas silenciosamente vazio. Uma identidade que vive para não ser abandonada.
A falta excessiva ensina a sobreviver, mas não a existir.
E um adulto que aprendeu a sobreviver, quando tenta simplesmente viver, estranha a própria liberdade.
O peso do excesso
Mas o outro extremo também fere: o amor que invade. O excesso de limite, de regra, de controle; tudo aquilo que não deixa espaço para a singularidade nascer. Quando há excesso de proteção, não há espaço para a autonomia. Quando há excesso de exigência, não há lugar para o erro; e sem erro, não há aprendizado emocional.
Melanie Klein descrevia que a rigidez emocional nasce de um medo inconsciente de perder o amor do outro. E quando a criança é amada apenas se for perfeita, obediente ou emocionalmente conveniente, ela aprende a confundir amor com desempenho. Na vida adulta, essa equação se repete: amar cansa, porque amar parece sempre uma tarefa.
O excesso ensina controle, mas não ensina confiança.
E uma alma que não confia, ainda que pareça firme, vive em alerta.
O ponto de equilíbrio
Entre a falta que paralisa e o excesso que sufoca, há um lugar que Winnicott chamava de ambiente suficientemente bom. Um espaço onde o erro é possível (e sempre é), o afeto é seguro e o crescimento é natural. Poucos de nós viemos de ambientes assim. Mas todos podemos reconstruí-los dentro de nós.
É preciso, agora adultos, aprender a ser o próprio ambiente suficientemente bom: aquele que se acolhe quando erra, que se sustenta quando desaba, que sabe parar antes do colapso e continuar quando o medo grita.
Bowlby dizia que a segurança não vem da ausência de dor, mas da certeza de que não estaremos sozinhos quando ela chegar.
E talvez seja isso o que nos cura: descobrir que, mesmo sem termos recebido o suficiente, ainda podemos nos tornar o bastante.
A metáfora da criação
Há algo de divino na forma como a vida nos convida ao meio. Entre o nada e o tudo, Deus (o Criador) soprou equilíbrio; limite e liberdade. E talvez sejamos mais parecidos com essa sabedoria do que imaginamos.
Porque a saúde emocional não está em nunca faltar, nem em sempre conter.
Está em saber fluir, em acolher o movimento, em sustentar o que é vivo.
Deus não nos fez perfeitos, mas inteiros; e inteireza é isso: viver o meio sem perder o sagrado, e para alguns, viver uma vida plena em Cristo, em busca de santidade, sem deixar de perceber e acolher a própria humanidade.
Selah.
Por Fernanda Gregório Fonseca
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Referências
Meus pensamentos, E também...
Freud, S. (1915). Instincts and Their Vicissitudes. Standard Edition.
Winnicott, D. W. (1965). The Maturational Processes and the Facilitating Environment. London: Hogarth Press.
Klein, M. (1940). Mourning and its Relation to Manic-Depressive States. International Journal of Psychoanalysis.
Bowlby, J. (1988). A Secure Base: Clinical Applications of Attachment Theory. London: Routledge.
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